Por Frater Goya
Antes de começar a ler este texto, o leitor precisa estar informado que o objetivo do mesmo não é invalidar a psicologia e suas ferramentas, que são extremamente valiosas na sociedade moderna, mas apenas demonstrar que por vezes, a presunção de um saber absoluto pode nos obrigar a dobrar os joelhos ante o erro que foi induzido por este sentimento. Há coisas sobre as quais nada conheceremos e outras das quais conheceremos bem pouco. A vida humana possui uma riqueza tremenda e uma pluralidade quase infinita e acreditar que podemos usar uma chave única para todas as interpretações, nos levará cada vez mais fundo num abismo do qual não poderemos depois retornar com segurança.
Pretendemos demonstrar um pequeno exemplo sobre como uma “leitura/interpretação” psicológica, pode levar ao erro e ao engano no entendimento de um texto tradicional. Costumeiramente chamo esse tipo de interpretação de “Teoria do Pato Donald” (exposta originalmente na Revista Planeta, Nº7 de Março de 1973, no artigo ‘Em Busca da Serpente Marinha’ e adaptada aqui):
Imaginemos que daqui 2 mil anos, uma equipe de arqueólogos desenterra fragmentos de uma obra de Walt Disney escrevesse pomposamente: “Os homens do Século 20 da era Cristã acreditavam numa espécie de pato branco, representado vestido com uniforme de marinheiro da época, sem dúvidas por tratar-se de um palmípede marinho. Com base nas efígies que possuímos dele, essa ave fabulosa, chamada de Pato Donald (Donald Duck em inglês), isto é, Senhor Velho Pato (de Don, senhor, ald, velho e duk, pato, nas diversas línguas páleo-européias) era dotada de dentes e tinha as mãos prenseis, com quatro dedos. A partir desses caracteres anatômicos, alguns zoólogos acreditam tratar-se de uma representação estilizada de uma espécie de sáurio, aparentada o Archeopterix, pássaro primitivo de traços reptilianos, que teria sido contemporâneo dos inícios da Idade Atômica.
Essa hipótese no entanto deve ser rejeitada, pois diversos tratados científicos da época já classificavam o Archeopterix e seus semelhantes entre os fósseis da era secundária, há quarenta milhões de anos, portanto. Devemos concluir que Donald Duck é um dos inumeráveis semideuses míticos cultuados ingenuamente pelos homens do século 20. Sem dúvida eles o invocavam, na esperança de assegurar uma proteção divina às suas viagens marítimas, além dele, havia ainda outras divindades menores, que eram por ele protegidas, uma espécie de trindade de deuses emergentes, chamados de Zezinho, Huguinho e Luizinho, e frequentemente suas narrativas mitológicas traziam outros personagens recorrentes como um rato e um tipo de cachorro mais evoluído que os demais, pois era um cachorro que falava enquanto outros na mesma história, pareciam ser apenas animais de companhia.”
Esse exemplo serve para nos lembrar que o pensamento sincrético, pode muitas vezes ser conduzido erronemente, como é dito num antigo ditado chinês que diz: “Se o homem errado usar o meio correto, o meio correto atuará de modo errado”. Tomamos a liberdade de pegar uns poucos trechos da obra “O Segredo da Flor de Ouro”, de Richard Wilhelm com prefácio e notas de C.G. Jung, publicado no Brasil pela Editora Vozes, e os comentarei em seguida sob a ótica do conhecimento de cultura oriental, como praticante e estudioso dos mesmos temas ali expostos.
Texto Original (Hui Ming Ching)
“Se quiseres completar o corpo diamantino sem efluxões Deves aquecer diligentemente a raiz da consciência e da vida. Deves iluminar a terra bem-aventurada e sempre vizinha e nela deixar sempre escondido teu verdadeiro eu”.
Leitura Psicológica Junguiana
Estes versos contêm uma espécie deindicação alquímica, um método ou caminho para a geração do “corpo diamantino”, que é mencionado em nosso texto. Para isso, é necessário um “aquecimento”, ou seja, uma elevação da consciência, a fim de que a morada da essência espiritual seja “iluminada”. Assim, pois, não é apenas a consciência, mas também a vida que deve ser elevada ou exaltada. A união de ambas produz a “vida consciente”. Segundo o Hui Ming Ching, os antigos sábios conheciam o modo de suprimir a separação entre consciência e vida, pois cultivavam as duas. Deste modo o “schêli (corpo imortal) se funde” e se “completa o grande Tao.”
O que o texto está querendo dizer realmente – Frater Goya
A cultura chinesa na sua antiguidade não possuía um conceito de vida após a morte, e portanto, era um pensamento que não atraía os pensadores chineses daquele período, que acabaram por desenvolver as técnicas da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), como acupuntura, Moxabustão, Sangria, herbalismo, Tuiná, e exercícios terapêuticos como o Qigong, como formas de preservar a vida o máximo que fosse possível, por não haver garantias de um pós-vida. Com isso, a busca por tornar-se imortal, e com o conceito Taoísta que a morte é uma escolha e não uma obrigação, criaram-se técnicas que buscavam gerar um corpo imortal, através de meditações, práticas de Qigong, Alquimia Taoísta e algo de Alquimia Sexual também.
Quando o texto diz: “Deves aquecer diligentemente a raiz da consciência e da vida. Deves iluminar a terra bem-aventurada…” a referência é ao Dantien, ou campo de cultivo do enxofre, que é um ponto energético dentro do corpo, com tamanho e forma próximos aos do útero feminino, mas que não possui existência física, mas que pode ser manipulado por essas técnicas.
O Hui-Ming Ching (Livro da Sabedoria da Mente ou da Natureza Original) foi publicado originalmente em 1794, como um tratado taoísta. O tratado original é bastante curto e possui passagens simbólicas que ilustram técnicas de meditação profunda e técnicas de yoga chinesa (qigong), que permitiriam o praticante a transcender a natureza humana rumo à divindade. Logo, o texto trata de técnicas físicas e de indução do pensamento (não bastando apenas “imaginar”, mas levar à mente a uma ação que irá interagir com o corpo).
O Segredo da Flor de Ouro
Noutra passagem lemos: “Mestre LÜ DSU dizia: Deve-se cumprir a decisão tomada de todo o coração e não procurar o resultado. Então, este virá por si mesmo. No primeiro período do desencadeamento poderão ocorrer principalmente dois erros: a preguiça e a distração.
Mas isto pode ser remediado. O coração não deve ser posto demasiadamente na respiração. A respiração vem do coração. O que provém do coração é respiração.
Assim que o coração é despertado, cria-se a força da respiração. Esta última é, originariamente, a atividade do coração, transformada. Quando nossas ideias correm muito depressa, ocorrem fantasias involuntárias que são sempre acompanhadas por uma aspiração, pois essa respiração interior e exterior é interligada como o som e o eco.
Diariamente aspiramos inúmeras vezes e é igualmente incontável o número de fantasias. Desse modo se esvai a clarezado espírito, da mesma forma que a madeira seca e a cinza se desfaz.”
O que o texto está querendo dizer realmente – Frater Goya
Aqui, o texto tradicional, quando diz: “O coração não deve ser posto demasiadamente na respiração. A respiração vem do coração. O que provém do coração é respiração.”, é apenas um alerta para que se evite a respiração torácica, buscando a respiração abdominal. A respiração torácica (respirar com o peito estufado, feito um soldado) gera a sensação de ansiedade também ajuda a aumentar a pressão sanguínea. Da mesma forma, quando na prática do Tai Chi Chuan o mestre orienta o aluno a antes de começar a sua prática “afundar o Qi“, ele está apenas dizendo para se buscar a respiração abdominal, tranquila, que é a respiração natural de um bebê quando nasce.
Esse linguajar simbólico e rebuscado tem como finalidade ocultar de olhos profanos técnicas milenares protegidas por famílias ou religiões que as produziam para seu próprio uso, com objetivo de preservar aquele grupo, aumentando a sua qualidade de vida e evitando doenças por exemplo, que poderiam exterminar outros grupos ou clãs inimigos que não tinham a mesma preocupação nem entrar em conflito armado por exemplo, ou caso isso fosse necessário, terem um desempenho melhor em campo de batalha.
Outros textos aludem a outras figuras de linguagem como por exemplo: “seguir pelo caminho de cultivo de cinábrio (enxofre) e seguir até a casa da fazenda e a partir daí subir ao palácio celestial dos imortais”. Esse texto em si carrega outra referência no corpo humano: novamente fazer que a respiração (controlada pela mente), suba pelas costas até um ponto específico (a casa da fazenda [ponto DM14 na acupuntura]) e subir até o topo da cabeça (para o ponto DM20 Baihui na acupuntura). Mais uma vez, são processos físicos e não aspectos da psique.
Um outro diagrama chinês de alquimia interna, o Neijin Tu, do século XIX, nos mostra a imagem de um corpo humano como reflexo microcósmico de toda natureza, sendo um mapa para atingir a perfeição através de técnicas alquímicas semelhantes as citadas acima no texto. A imagem mostra diversas paisagens como os 3 tesouros, os 3 Dantien (inferior com o touro cultivando a terra, médio ponto dourado no centro do peito e superior como o monge meditando). Sua explicação complexa não cabe na finalidade do presente texto.
Logo, cremos que nessa altura deste pequeno texto, fica demonstrada a limitação de uma interpretação que tenha como objetivo interpretar tais imagens (escritas ou desenhadas) apenas como uma representação da mente ou um mapa da mesma. Muitas vezes símbolos são compostos que envolvem não somente atos da mente, mas também atos do corpo ou provocados pelo corpo, ou ainda relações com lugares que tem importância per se, e não apenas enquanto uma relação arquetípica com a psique humana. Ignorar isso seria o equivalente a nos deixar eternamente presos dentro da mente humana, como se não houvesse nenhuma realidade física que se impõe diante do ser humano e sua relação com o universo que o cerca. Embora tenhamos usado poucos exemplos, acreditamos ter esclarecido o leitor o suficiente para que não se deixe levar por devaneios e ginásticas mentais esdrúxulas que nada acrescentam à jornada pessoal, do que mera satisfação mental além de ter “decifrado” ainda que erroneamente, os segredos da esfinge, mas o segredo ainda está lá e o estudante do meramente racional será devorado por ela.