O Vento de Djemila

Há lugares em que o espírito morre a bem de uma verdade que ele nunca nega. Quando fui a Djemila, imperava um silêncio premente sobre tudo – imóvel como pratos equilibrados de uma balança. Alguns gritos de pássaros, os sons abafados de uma flauta com três furos, os passinhos miúdos das cabras – todos esses ruídos me trouxeram pela primeira vez à consciência o silêncio e o desconsolo do lugar. De vez em quando, o ruflar das asas de um pássaro que levantava vôo nas ruínas. Cada caminho, cada trilha entre restos de casas, as grandes ruas calçadas entre as colunas brilhantes, o forúm num antiplano entre o Arco do Triunfo e o Templo – tudo terminava naqueles abismos que cercam Djemila por todos os lados, que se espraia como se fosse um baralho com cartas esparramadas sob o céu infinito.
E lá, nos sentimos sós e cercados pelo silêncio e pelas pedras; o dia passa, as montanhas parecem crescer e tornam-se cor de violeta. Mas o vento sopra o planalto de Djemila. No meio dessa magnifica confusão de sol e vento, e de ruínas banhadas de luz, o passado silencioso da cidade morta se infiltra cada vez mais nos homens e os deprime.

É preciso tempo para chegar a Djemila. Não é uma cidade na qual se para no intuito de prosseguir viagem depois. Djemila não leva a lugar algum e não há paisagens para ver. Trata-se de um lugar que se abandona logo. A cidade morta fica no fim de uma longa estrada sinuosa, que parece não ter fim e que, por essa razão, parece tão cansativamente longa. Afinal. bem no meio das altas montanhas, sobre o planalto descorado, surge o esqueleto de uma floresta petrificada: Djemila, parábola do visível vazio por toda parte, que só um coração batendo apaixonadamente no peito nos permite alcançar o mundo. Lá no meio de umas poucas árvores, está a cidade morta, que se defende com todas as suas montanhas e ruínas contra a admiração barata, a incompreensão pictórica e os sonhos insensatos.

Vagamos nesse brilho tórrido durante todo o dia. Aos poucos surgiu o vento, que antes do meio dia mal dava para notar; ele parecia aumentar de intensidade a cada hora que passava e parecia encher todo país. Vinha de longe, de uma brecha entre as montanhas do lado leste, corria do horizonte nessa direção e se arremessava em rajadas por entre ruínas banhadas de sol. Eu adejava como uma vela ao vento. Meu estômago se contraiu; meus olhos ardiam, meus lábios se racharam e minha pele ressecou até que mal a sentia. Até esse momento era através dela que eu decifrava a escrita do mundo, os desenhos de sua benevolência e de sua ira, quando o hálito do verão a aquecia ou a geada com suas garras de frio a agredia. Mas agora, chicoteado e sacudido, ensurdecido e esgotado pelo vento, perdi a sensibilidade da superfície que mantinha o meu corpo. O vento me erodia como a maré vazante e enchete faz com um pedregulho, e me desgastara até deixar minha alma a nu. Agora, eu apenas fazia parte daquela força que fazia de mim o que queria, e que cada vez se apossava de mim de maneira diferente, tomando posse do meu ser até que, por fim, me possía por inteiro. Eu lhe pertencia de tal modo que o meu sangue pulsava no seu ritmo e rumorejava como o coração todo-poderoso da natureza presente em toda parte. O vento me transformou num pertence de minha deserta e tórrida circunvizinhança; seu abraço
fluido me petrificou até que eu, pedra sob pedras, fiquei solitário e imóvel como uma coluna ou uma oliveira sob o céu ensolarado.

O vento violento e o banho de sol esgotaram toda a minha força vital, que mal movia em mim suas asas impotentes, mal se esforçava por se queixar, que não se defendia. Finalmente, derramado em todos os ventos, me esqueci de tudo, até de mim mesmo, tornei-me esse vento lamuriento e essas colunas e esse arco, esse ladrilho brilhante e essas pálidas montanhar ao redor da cidade abandonada. Nunca em toda a minha vida senti com tal intensidade ambas as coisas ao mesmo tempo: minha própria dissolução e minha presença neste mundo.

Sim, eu existo; e cada vez fica mais claro que estou tocando um limite, como um homem aprisionado para o qual tudo existe; mas também como um homem que sabe que “amanhã” será como “ontem”, e que um dia será igual ao outro. Pois, quando um homem toma conhecimento de que existe, ele não espera mais nada. As paisagens mais banais refletem um estado de espírito. Mas eu procurei neste país, por toda parte, algo não me pertencia, mas que partia dele; uma certa amizade com a morte, na qual nos entendêssemos. Entre as colunas, que agora lançam sombras enviesadas, meus medos se dissolveram como pássaros feridos na clara secura do ar. Todo medo provém de um coração vivo; no entanto, cada coração encontrará a paz; isso é o que eu sei, e nada mais. Quanto mais o dia se aproxima do fim, tanto mais descorado e silencioso se torna o mundo sob a chuva de cinzas da escuridão crescente; tanto mais perdido e impotente eu me sentia contra aquela revolta lenta e interior que diz “não”.

Poucos homens entendem que existe uma recusa que nada tem que ver com renúncia. O que significam aqui palavras como futuro, profissão ou progresso, ou a evolução do coração? Quando obstinadamente não quero ouvir nada sobre “mais tarde”, isso acontece sobretudo porque não quero sem mais renunciar à minha atual riqueza. Como um jovem, não quero acreditar que a morte representa o início de uma nova vida.

Para mim, ela representa uma porta que se fecha. Não digo: trata-se de um limiar que é preciso transpor – para mim ela é uma aventura terrível e suja! Todos os argumentos que querem me impingir é que ela tira o fardo que os homens carregam. No entanto, eu vejo o grande pássaro com seus volteios pesados circular sobre Djemila e peço por um determinado fardo de vida e o recebo. Apegar-me por inteiro a esse desejo: suportá-lo – o resto já não tem importância. Sou jovem demais para falar a respeito da morte. Mas se fosse preciso – aqui eu encontraria a palavra certa, que entre o susto e o silêncio reconhece com clareza uma morte sem esperanças.

Vive-se com algumas poucas ideias conhecidas – duas ou três. Conforme a região em que crescemos e as pessoas que encontramos, nõs as polimos e lhes damos outra aparência. A fim de termos ideias próprias sobre as quais falar, precisamos de dez anos pelo menos. Enquanto isso, porém, o homem vai se familiarizando com o lindo semblante do mundo. Até então, ele o encara de frente. Mas depois ele precisa dar um passo para o lado e observá-lo de perfil. Contudo, um homem jovem encara o mundo de frente: ainda não teve tempo para se acostumar com ideias sobre a morte ou sobre o nada, embora às vezes seja atormentado por elas.

Mas juventude é exatamente isso: esse amargo diálogo com a morte, esse medo físico do animal que ama o sol.

Ao contrário do que se afirma, a juventude não se preocupa com essas coisas. Não tem tempo nem incinalão para isso. Estranho: diante dessa paisagem montanhosa, diante dessa sombria solenidade do grito petrificado que se chama Djemila, diante dessa esperança morta e dessas cores esmaecidas, compreendo que, para um homem ter o valor de ser chamado de homem, ele tem de renovar esse diálogo com a morte, renegar suas poucas idéias e redescobrir aquela inocência e correção que brilhavam nos olhos dos homens antigos que enfrentavam livremente o seu destino. Ele reconquista a sua juventude, mas só na medida em que estender a mão para a morte.

Quanto desprezo pelas doenças! A doença é um remédio contra a morte, para a qual ela nos prepara. A primeira coisa que o aprendiz aprende na sua escola é a autocompaixão. Ela ajuda o ser humano em sua esforçada tentativa de se furtar à certeza absoluta da morte. Mas eu vejo Djemila e sei: o único progresso verdadeiro da cultura, que de tempos em tempos um homem realiza para si, está em morrer com consciência.

Sempre fico espantado com o fato de nossas ideias sobre a morte serem tão escassas, visto que nossos pensamentos se voltam celeremente em várias direções. A morte ou é boa ou é má. Ou nós a chamamos ou fugimos dela (como se diz). Mas isso também prova que o mais simples pensamento sobre a morte está além do nosso alcance.

O que é isso a que chamamos “azul”? Como podemos pensar sobre o azul? O mesmo vale para a morte. Não podemos falar sobre cores ou sobre a morte. Digo para mim mesmo: preciso morrer; mas o que é isso? Não posso acreditar nisso, nem fazer a experiência, a não ser nos outros. Já vi pessoas e cães morrerem. A coisa mais terrível é tocar neles. Nessas ocasiões, penso em flores, no sorriso das mulheres, no amor e compreendo que o meu medo à morte nada mais é que o oposto da minha vontade de viver. Tenho inveja de todos os que viverão no futuro, e que sentirão a verdade das flores e das mulheres na carne e no sangue. Sinto inveja, porque eu mesmo amo demais a vida e a amo com egoísmo predestinado. O que me importa a eternidade? Algum dia, talvez eu esteja preso a uma cama, e alguém dirá: “Vamos, você não é covarde, portanto, serei franco. Morrerá logo”. E lá estarei deitado, com toda a minha vida, com todo o medo que me fecha a garganta, e olho para a pessoa completamente perplexo. O sangue aflui à minha cabeça e sinto minhas têmporas pulsarem. Provavelmente, destruirei a golpes tudo o que encontrar ao meu redor.

Porém, os homens morrem contra a vontade. Dizemos então a eles: “Quando você ficar bom…”, e depois eles morrem. Mas não quero isso. E, se a natureza até agora mentiu, também disse a verdade. Nessa noite, Djemila diz a verdade; e que triste, como sua beleza fala convincentemente! Não quero mentir diante de mim nem diante do mundo; também não quero que me iludam. Quero ver com clareza até o fim e quero contemplar meu fim com toda a inveja e todo o medo que me sacodem. Quanto mais me separo do mundo e me apego ao destino dos homens vivos, em vez de olhar para o céu eterno, tanto maior fica o meu medo de morrer. Morrer com consciência significa: atravessar o abismo que se interpõe entre nós e o mundo e, sem alegria e com consciência, compreender que a beleza deste mundo acabou para sempre, aceitando o fim. E o canto lamentoso das colinas de Djemila arraiga profundamente na minha alma esse triste conhecimento.

( Alberto Camus, O Casamento da Luz)