Um Companheiro de Lúcifer

Por Jacques Mousseau – Revista Planeta, nº007, 1973

Os pactos com o diabo existem. Aleister Crowley fez um. Ele se chamava a si mesmo de “A Besta”. Era prodigiosamente inteligente e diabólico. Tinha poderes excepcionais: podia apagar uma vela a dez metros de distância, usando a força mental. Exercia fascinação sobre as mulheres, que se tornavam verdadeiras escravas, fazendo tudo o que ele queria. Dizem que influenciou algumas idéias de Hitler, mas nunca se aproximou do ditador nazista. Rico, Crowley tornou-se mágico, depois de umas visões estranhas. Sua vida foi agitada, confusa. Morreu na miséria, arruinado por drogas.

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Por trás do pequeno porto siciliano de Cefalu, avistava o morro Santa Bárbara, com suas encostas cobertas de oliveiras. Parecia ver a minha frente, naquela manhã ensolarada de agosto, o homem estranho que, quarenta anos atrás, tinha vindo morar no local que lhe fora designado por um oráculo chinês.

Hoje pouca gente se lembra de Aleister Crowley em Cefalu. Nos primeiros dias de abril de 1920, Crowley e sua amante americana Leah Faesi mudaram para a ilha. Desejavam fundar ali um templo de magia, uma usina de energia oculta que suplantaria o cristianismo num futuro próximo. Uma outra mulher os acompanhava: era Ninette Fraux, a segunda amante do mágico, e duas crianças. Uma delas era Poupée, filha ilegítima de Crowley e de Leah Faesi. Posteriormente, outros discípulos do mago desembarcaram em Cefalu: Elizabeth Fox, a amante número três, Mary Butts e Cecil Maitland. Todos eles foram iniciados em diversos mistérios, como por exemplo o acasalamento de um bode, símbolo da fecundidade, com Leah Faesi. Estava ali também Norman Mudd que se demitiu de sua cadeira. numa universidade da África do Sul para colaborar na edificação da grande obra mágica.
Nunca houve muitos turistas visitando as colinas de Santa Bárbara, mas até o momento em que Mussolini expulsou dali Aleister Crowley, em 1922, o vaivém dos iniciados, adeptos e admiradores foi intenso. Aos novos visitantes, o mago oferecia primeiramente uma navalha para que cortassem o braço toda vez que empregassem a palavra “eu”. Somente o mestre tinha o direito de empregar esse pronome pessoal.

Aleister Crowley realizou em Cefalu a obra dos seus sonhos: fundar a abadia de Telemo imaginada por Babelais. O oráculo chinês informara-lhe que a hora tinha chegado. Na casa situada na encosta do morro Santa Bárbara, reinava a regra que Babelais inscrevera em letras douradas na porta de sua abadia imaginária: “Do what thou wilt shall be the whole of the law”, (Faze o que desejas: este será o princípio fundamental da lei). Mas essa liberdade era a recompensa dada aos que tinham atingido a suprema sabedoria. Para chegar lá, era preciso primeiro submeter-se à vontade do mestre. Crowley, por sinal, comportava-se como um verdadeiro tirano junto aos fiéis que faziam retiro na abadia de Telemo, fossem hóspedes permanentes ou de passagem.
NUAS AO SOL

Quando desejava punir suas inúmeras amantes de alguma desobediência, Crowley as expunha nuas, os braços em cruz, em cima dos rochedos que davam para o mar. Deveriam permanecer ali imóveis e mudas, marcadas a ferro no meio do peito com o sinete de seu senhor, abençoando interiormente a dependência que gozavam, até que uma ordem dele suspendesse o castigo. Os camponeses sicilianos costumavam contemplar com um desejo distante aquelas estátuas de carne expostas à dureza das rochas. O pároco da aldeia procurava explicar da melhor forma possível a seus fiéis, que se escandalizavam, o comportamento excêntrico do senhor inglês – já que as autoridades italianas toleraram sua presença na ilha durante vários anos.

Todos os homens na abadia deviam raspar a cabeça, com exceção de uma única mecha em cima da testa. As mulheres tingiam os cabelos de vermelho ou de amarelo. Usavam um vestido azul celeste que caía como uma túnica sem pregas. Todos os membros da comunidade escreviam diários onde anotavam seus pensamentos e aspirações mais íntimas. O mestre, naturalmente, tinha livre acesso a essas confissões, tantas vezes quantas desejasse.

A casa de veraneio onde Crowley imaginava reunir energia mágica suficiente para conquistar o mundo, era uma modesta construção térrea. Cinco quartos davam para a sala principal: o Sanctus Sanctorum ou o templo dos mistérios telêmicos. Em cima dos azulejos vermelhos, Crowley desenhou um círculo mágico e um pentagrama, cujas pontas tocavam as bordas da circunferência. O trono do sábio ficava a leste; o de sua amante número um, ou mulher escarlate, ficava a oeste. Nas paredes do templo, Crowley pintara pessoalmente todas as posições possíveis do ato sexual.

Era ali que os residentes diziam suas orações cinco vezes por dia, seguiam os ofícios gnósticos, sacrificavam animais, invocavam os demônios e entregavam-se aos ritos sexuais. A casa existe ainda hoje. Um coronel da aviação aposentado mora ali com sua família.

É muito difícil falar seriamente de um indivíduo que se gabava de ser “o homem mais perverso da criação”. Ocorre-nos imediatamente a idéia de um adolescente retardado, ou que ele não merecia o diploma honroso que se atribuiu a si mesmo. Crowley, de fato, parece ter sido um adolescente retardado e um psicanalista encontraria na sua infância austera algumas explicações para seu comportamento excêntrico.

Edward Alexander Crowley nasceu em 12 de outubro de 1875, em Leamington, na Inglaterra. Mais tarde, ele adotou o nome Aleister, por lhe parecer mais enigmático. Aliás, realizou prodígios de imaginação para descobrir uma genealogia nobre: pensava descender da grande família bretã de Querouailles. Pretendia igualmente que o grande poeta inglês do século 17, Abraham Crowley, era seu antepassado. Essa paixão dos nomes e dos títulos, juntamente com a dos disfarces, acompanharam-no a vida inteira. Quando se mudou para Londres, após terminar os estudos, adotou o nome de Wladimir Svaref. Na Escócia, o de Lord Boleskine e no Oriente, o de príncipe Chioa Khan. A lista dos seus nomes fictícios é interminável.

Na realidade, seu pai era um burguês austero da província, cuja família havia enriquecido fabricando cerveja. Na casa paterna, o dia começava com a leitura e o comentário de alguns versículos da Bíblia. Esse costume se repetia durante as outras refeições, até a hora de dormir, que era precedida de um último sermão. Não havia jogos nem distrações. Com dez anos, Aleister imaginava-se um futuro soldado de Cristo. Desde o fim de sua adolescência, porém, ele descobriu sua verdadeira vocação: seria um soldado do diabo.

Com essa disposição entrou para o Trinity College, uma das mais famosas faculdades de Cambridge. Ali, dedicou seu tempo à poesia, inspirado pelas obras de Baudelaire e de Swinbume. Revelou-se igualmente um rebelde de idéias originais e excêntricas, cuja influência sobre os colegas foi bem cedo considerada nociva.

UMA SÉRIE DE REVELAÇÕES

O pai de Crowley morreu muito jovem deixando uma fortuna de 40 mil libras, o que iria permitir ao filho levar a existência que desejasse e, antes de tudo, abandonar-se a sua paixão de viagens. No dia 31 de dezembro de 1896, enquanto dormia num hotel de Estocolmo, Crowley foi acordado pela revelação de que possuía poderes mágicos.

Descobria finalmente o que sempre desejou ser, inconscientemente: um adepto das ciências ocultas, um mago. Sua tarefa era partir à procura dos segredos que desenvolveriam seus dons, buscar as origens da magia, primeiro nas sociedades secretas do Ocidente, depois nos mosteiros do Tibet, com os iogas da Índia e até mesmo da China distante. Talvez seu grande desejo fosse se tornar uma celebridade. E a magia lhe parecia um caminho seguro para alcançar a glória. Crowley entendia por magia a arte que dava ao indivíduo um controle secreto e eficaz sobre as forças da natureza.

A vida de Crowley foi uma sucessão de revelações e de emoções. Ele sempre tinha a impressão de ser conduzido para situações excepcionais. Pouco a pouco, passou a acreditar que era o novo Messias. Isso explicava as precauções que os demônios e o destino tomavam com sua existência.

Sua revelação número um foi a descoberta, em Paris, da Magia Sagrada, do mago Abra-Merlin. Aleister Crowley fez dessa obra seu livro de cabeceira. A segunda revelação ocorreu alguns anos depois, no Egito. Uma voz misteriosa conduziu-o até a estátua do deus Horus, que estava marcada com o número 666 – o número da Besta no Apocalipse, que Crowley já havia adotado como seu. O deus egípcio ditou-lhe os 75 versículos de sua bíblia, O Livro da Lei.

Quando os instantes privilegiados se faziam mais raros, Crowley recorria aos pauzinhos chineses, que atirava em cima da cama ou de uma mesa e cujas ordens ele interpretava. “Se desejas entregar-se à magia – escreveu Abra-Merlin – deves começar por construir um oratório segundo certas formas exatas. A porta deve abrir para o norte, no alto de um terraço coberto de areia fina de rio. Na extremidade do terraço deve haver uma pequena loggia, onde os espíritos demoníacos poderão se reunir.” Em que lugar Crowley deveria construir um templo mágico? Ele viajou muito tempo à procura de um local propício, até se decidir por uma pequena casa na Escócia, perto de Loch Ness. Foi ali que iniciou verdadeiramente sua vida de mágico praticante.

Aparentemente, seus primeiros passos no ocultismo revelaram inexperiência, pelo que aconteceu em sua casa. Seu cocheiro começou a sofrer de delirium tremens, uma vidente que fizera vir de Londres abandonou-o pela prostituição, o proprietário de sua casa desapareceu misteriosamente, um operário da vizinhança enlouqueceu e tentou matá-lo. Finalmente, o açougueiro da cidade, com quem havia brigado, cortou acidentalmente a artéria da perna e morreu.

Como explicar esses fatos? Simples coincidências ou manifestações de uma aura maléfica? No momento em que abandonamos o tom de narração neutra a propósito de Crowley, corremos o risco de passar por crédulos ou adeptos. Nosso objetivo, contudo, se limitará a contar a história de um homem estranho que, vinte anos após sua morte, continua envolto no mistério. Se Crowley não fosse um problema, primeiro para os psicanalistas, depois para os historiadores do ocultismo, que interesse teríamos por ele? O número dos psicopatas é infinito, o dos maníacos sexuais não é menor. Um dos enigmas colocados por Aleister Crowley é a constância de certas obsessões em sua vida.

Dificilmente podemos negar que havia algo nele do adolescente perverso. O sexo dominou sua existência e ele era dotado nesse setor de apetites insaciáveis. Não dava a mínima importância à idade, sexo ou atrativos físicos das pessoas com quem praticava suas orgias. Talvez preferisse as mulheres feias. Mas a sexualidade nunca foi para ele a satisfação banal das necessidades físicas. Ela esteve sempre intimamente ligada a suas práticas mágicas.

Se for exato que a energia sexual sublimada é um dos elementos da ioga ou da magia branca, é possível também que a orgia ajude o mágico a entrar em contato com forças negativas e destruidoras. Isso explica por que centenas de mulheres estiveram associadas à vida de Crowley. Se muitas delas desconheciam a virtude, muitas outras não pareciam destinadas à promiscuidade. Duas das três esposas do mágico terminaram a vida num hospício. Inúmeras amantes dele perderam a fortuna, a honra e a essência imaterial da feminilidade. Aleister Crowley, por sua vez, tinha uma opinião medíocre das mulheres. Dizia que elas deveriam ser entregues em casa como o leite, pela entrada de serviço. Mesmo assim, ele exercia sobre elas um fascínio indefinível. Possivelmente, um poderoso magnetismo sexual emanava dele. Por outro lado, ele recorria a qualquer artifício para acentuar esse dom, indo da hipnose aos perfumes afrodisíacos.

Contam que certo dia, em Londres, Crowley parou diante de uma vitrina, ao lado de um casal de jovens. A moça o seduziu especialmente. Algumas horas mais tarde, ela o acompanhou a um hotel onde passaram dez dias juntos. Satisfeito o desejo da novidade, ele afastou-se dela como de tantas outras cuja existência havia arruinado. Nesse meio tempo, o marido havia iniciado um processo de divórcio.

Por que motivo aquela moça recém-casada seguiu a Besta – como ele próprio se denominava? Essa pergunta nunca recebeu uma resposta satisfatória.

OS SUPERIORES DESCONHECIDOS

Certas idéias adotadas por Crowley em suas conversas ou em seus livros, poderiam ter sido pronunciadas por Hitler. Segundo alguns historiadores, Hitler sabia da existência do mago negro e mencionou pelo menos duas vezes seu nome em público. Crowley, bem entendido, nunca representou o papel do líder nazista, nem tampouco exerceu sua influência. Mas durante toda sua vida esteve cercado de fiéis dispostos a segui-lo, de mulheres prontas a amá-lo, de amigos que o entretinham, de discípulos que divulgavam suas idéias. Sua fortuna foi dilapidada em dez ou quinze anos. Se mais tarde, durante cerca de trinta anos, conheceu dificuldades econômicas, encontrou sempre alguém que lhe pagasse as viagens, que lhe fornecesse cocaína e haxixe.

Embora não tenha conhecido pessoalmente Hitler, Crowley manteve contatos oficiais com os serviços secretos alemães. Em 1921, recebeu a visita inesperada, em seu apartamento de Londres, de Theodore Reuss, que era ao mesmo tempo chefe da sociedade secreta alemã Ordo Templis Orientis (Ordem dos Templários Orientais) e um autêntico espião. O objetivo da visita de Reuss foi criticar violentamente o mágico inglês por haver revelado em seus livros as regras de iniciação de sua ordem. Crowley defendeu-se com eloqüência e jurou que seria mais discreto no futuro. Os dois homens separaram-se cordialmente, após Crowley ter aceito dirigir o ramo britânico da O.T.O. – função que exerceu sob o nome de Baphomet. Esse episódio foi o coroamento de uma complicada peregrinação realizada por Crowley, junto às principais sociedades ocultistas do Ocidente.

Ele conheceu na Suíça, depois de terminar os estudos, um químico inglês que o introduziu à sociedade secreta Golden Dawn, da qual faziam parte Arthur Machen e o poeta Yeats. Após ter sido aceito na ordem, Crowley percorreu rapidamente os diversos graus de hierarquia: neófito, zelador, teórico, prático e filósofo. Ao atingir o último posto, ele desejou conhecer um dos Superiores Desconhecidos, espécie de super-mágicos que controlam as ações humanas de algum mosteiro secreto no Tibet ou em outro lugar do mundo.

Seu desejo concretizou-se certa noite em Paris, quando encontrou no Bois de Boulogne o chefe da sociedade secreta inglesa, Mathers, e mais três grandes magos. Depois desse encontro, Crowley não suportou mais ocupar uma posição secundária. Rompeu com Mathers e fundou sua própria sociedade iniciática, a Silver Star, cujo selo secreto era A.: A.:. Somente em Londres essa sociedade contava 38 membros em 1914.

A dúvida é saber se Aleister Crowley foi um verdadeiro mágico e iniciado ou se apenas representou esse papel durante a vida inteira. O mais provável é que ele tenha desenvolvido ao máximo certos poderes latentes que existem em todos os indivíduos. Contam que em Cambridge ele praticava exercícios de concentração mental. Segundo o testemunho de um professor, ele podia apagar uma vela, colocada a dez metros de distância, pela simples força da vontade. Em Cefalu, predisse a morte de Poupée, a morte de um primeiro discípulo, Raoul Loveday, e o suicídio do professor Norman Mudd. Todos os três dramas aconteceram de acordo com as previsões de Crowley.

Betty Loveday, que não gostava de Crowley, devido ao domínio total que exercia sobre seu marido, contou que certa vez a gata da casa, Mischette, foi condenada à morte por ter arranhado seriamente o mago. “Você não sairá daqui durante três dias, até a hora do sacrifício”, ordenou Crowley. Betty Loveday fez tudo para salvar a gata: levou-a para longe, expulsou-a de casa, etc. A gata voltava sempre ao lugar indicado e aguardou sem comer nem beber o momentos a morte.

Segundo a opinião de alguns, Crowley possuía duas personalidades: uma, a exterior, que desejava surpreender a imaginação dos outros e não poupava nada para satisfazer suas paixões; a outra, mais interior, que possuía o segredo de um poder que se manifestava de tempos em tempos. George Langelaan, escritor e colaborador do Planète, conheceu o poeta-mágico em Paris, pouco antes da última guerra. Eis o testemunho que deu: importante porque acrescenta uma nota humana ao caso Crowley. “Quando conheci Aleister Crowley, no ano de 1930, sabia apenas que era irlandês. Jamais poderia adivinhar que aquele homem meio obeso, grisalho e sorridente, era ao mesmo tempo poeta, pesquisador, sombra do reino das sombras, ótimo cozinheiro, grande bebedor de café, alta personalidade das sociedades secretas, príncipe da alquimia e grande mestre da magia negra! Só muito mais tarde, e lentamente, descobri a verdade: Crowley foi uma das grandes influências da nossa época, um dos três ou quatro grandes homens cuja existência suspeitamos antes mesmo de conhecer.

“Conhecemo-nos mais intimamente no clube de xadrez da colônia britânica existente em Paris. Naquela época, os jogadores se reuniam uma ou duas vezes por semana no Café du Grand Palais, que tinha a vantagem de ficar aberto até tarde e estar quase sempre deserto.

“Crowley era um jogador curioso. Ganhar ou perder não significava nada para ele. Aliás, o próprio jogo deixava-o indiferente. O que buscava no xadrez era a situação, a posição singular que, de repente, excitava sua imaginação. Aí então mostrava-se muito hábil e era capaz de jogar como um campeão. Em compensação, abandonava a partida se uma situação não lhe interessava, mesmo quando tinha a certeza de ganhar. Ele ia regularmente às reuniões do clube, mas recusava participar nos campeonatos ou outras modalidades de competição. Quando acontecia de jogar com ele, tinha sempre a impressão que, se ele desejasse, a partida teria terminado de maneira bem diferente. Outras vezes, ele ficava em posição de inferioridade unicamente para criar uma posição interessante – ou então para ver como eu me comportava.

“Seu nome tornou-se muito conhecido quando um jornal de Paris publicou uma série de artigos sobre magia. Chamavam-no o papa da magia negra, cuja capital era a cidade de Lião. De fato, Crowley ia freqüentemente a Lião. No clube, os artigos foram muito comentados. Crowley achou graça e zombou do caso, mas não desmentiu.

“Uma noite, contudo, presenciei Aleister Crowley recorrer a certos poderes mágicos. Digo mágicos porque esse qualificativo corresponde perfeitamente ao homem e à lenda, mas nada prova que o poder que utilizou naquela ocasião fosse “mágico”, termo que implica a intervenção de outros espíritos. Talvez possuísse apenas um poder pessoal, capaz de atuar sobre as pessoas e as coisas. Eis como o fato se deu:

“Crowley aceitou, excepcionalmente, participar de um campeonato de xadrez. O capitão da nossa equipe rogou-lhe esse favor quando soube que iríamos enfrentar adversários muito fortes. Como bom estrategista, nosso capitão colocou Crowley no tabuleiro número um, sacrificando-o ao jogador mais forte do time adversário. Dessa forma, os outros jogadores do nosso time teriam uma possibilidade maior de ganhar.

“Crowley sentou-se sorrindo em frente ao tabuleiro e, sem nenhuma modéstia, jogou mal e muito depressa. Às vezes encontrava uma combinação interessante que obrigava o adversário a refletir algum tempo antes de responder. Perdeu a maior parte das partidas, mas conservou sempre seu sorriso. À medida que as partidas se sucediam, Crowley encontrou-se diante de um dos melhores jogadores do mundo naquela época, o mestre Tartakower. Certo de marcar um ponto para sua equipe, o grande mestre jogava muito calmo. Crowley também estava perfeitamente tranqüilo, à procura, como sempre, de uma posição interessante. Mais ou menos uma hora após o início da partida, Crowley aproveitou que seu adversário refletia, para dar uma volta pela sala e observar os outros tabuleiros..

– Nada brilhante – disse ao capitão da nossa equipe.

– Pois é. E você? Como está sua partida com Tarta?

– Continuo somente por uma questão de ética. Mas ele vai ganhar. Já me comeu um peão.

– Não tem esperança de empatar?

– Por que não ganhar, já que estamos no jogo? – disse Crowley sorrindo.

– Seria um ponto precioso para nós, um ponto que nos salvaria da desclassificação…

– Olha, meu velho, não entendo nada de contagem de pontos, mas, se for realmente tão importante, vou dar um jeito.

– Claro que é importante, mas como?…

– Vou organizar meu jogo, pelo menos esta vez – disse Crowley voltando ao seu tabuleiro.

“Alguns minutos depois, jogou, parou seu relógio e pôs em movimento o do adversário. E dirigiu-se então ao banheiro que ficava no subsolo. Eu o tinha visto sair mas não pensava mais nisso quando desci por minha vez. Encontrei-o em mangas de camisa, com o colarinho aberto, diante de um espelho. Olhava-se fixamente e fazia uma ginástica estranha com as mãos e os braços, como um hipnotizador, só que empregava uma gesticulação semelhante à dos surdos-mudos. Sorriu ao perceber o esforço que fazia para ficar sério e disse: – Não é nada. Estava em conferência com o barão. – Nunca fiquei sabendo quem era esse barão!

“Imaginem minha surpresa, poucos instantes depois, quando vi Tartakower derrubar seu rei em sinal de abandono! Ele perdera a partida em conseqüência de uma jogada estúpida, imperdoável para um mestre.”

Algum tempo depois dessa noite, Aleister Crowley foi expulso da França, como havia sido da Itália. Magia negra? Espionagem? As razões que motivaram essa decisão nunca foram divulgadas. Ao morrer, em 1944, numa pequena pensão ao sul da Inglaterra, o poeta-mágico estava reduzido à miséria. Sua solidão moral e afetiva era quase total. Sua saúde arruinada há alguns anos, pelo uso de drogas. A grande inteligência que o servira na vida tinha sido o próprio agente de sua destruição. Ninguém pode fazer impunemente um pacto com o diabo: a lição do doutor Fausto não pertence apenas ao domínio da lenda.